domingo, 11 de outubro de 2009

IV - A Metamorfose

E Eis que o sol se ergueu para iluminar a Terra e todos aqueles que eram dignos de a habitar. Pois se eram dignos de habitar a Terra e receber o calor majestoso do Sol, que mais mereceriam eles? Com a ascensão do bicharoco Homem, surgiu também a metafísica para lhe atormentar a alma, virou-se para os céus de braços abertos à espera de respostas. É de facto um cliché, ainda hoje fazemos isso, que raio evoluímos nós? A nossa alma, um recipiente à espera de ser cheio, é muito espelhada e inconstante. Por vezes, o mínimo lampejo de luz chega para alumiar esta alma e enche-la de qualquer coisa. Talvez por isso nos viremos para o céu iluminado e majestoso, sem nos depararmos que estamos simplesmente a tentar olhar para nós, a tentar projeccionar o nosso ego bem alto para todos o verem.
E assim, com a mesma facilidade com que um padeiro cria um pão ou um filho com a vizinha, o homem criou Deus à sua imagem e semelhança e todas as respostas foram dadas. Afinal, que interessa se a resposta é falsa? No fim, é tudo o mesmo: Morte. Portanto, "bem aventurados são os pobres de espírito, pois deles é o reino dos céus." Assim diz a Bíblia, e assim o é, pois aquele que tem fé deixa de ser atormentado por perguntas, é cego, reles, estúpido, inferior, mas é estupidamente feliz. Foi cedo que o ego do Homem se expandiu e se tornou venerável. Colocar-nos num pedestal e olharmo-nos de fora. Que orgulho! Que poder! Que egoísmo! Que podridão tão prazerosa! A ascenção do homem fez-se do ego. Neotenia? Sim, mantemos para sempre a curiosidade de uma criança, e sim, também seremos sempre umas crianças mimadas e egocêntricas. Um bebé de 1 mês não tem percepção de nada senão de si. Assim nós somos, vemo-nos como centro e propósito do universo girar e de toda a vida existir. Auto-aniquilamo-nos porque Deus assim o quer, porque nós assim o queremos. Reinamos por toda a terra, criamos e destruímos, é um facto. Somos donos e senhores de nós mesmos, mas somos muitos e temos medo da anarquia. Então, como camponeses amedrontados, precisamos do nosso Senhor, duma organização hierárquica, do mestre das marionetas. Somos marionetas da nossa própria criação, somos essa criação. Somos a mais pura e bela das criaturas, ou assim nos queremos fazer parecer. A condição humana como deve ser por natureza é imoral, pecaminosa, somos seres de desejos, tentações, vontade, sonhos e inconsciência. E no entanto, sabendo nós que isto é oposto do Deus recto que criámos, vemo-nos como nossos próprios Deuses, pois nos convencemos que apenas reinando no pecado a bondade se distinguirá. De facto distingue, tem como hábito ser cruxificada mais ou menos literalmente. O mártir, o santo apedrejado, cuspido e repugnado. Na sua vida terrena foi bom, é por conseguinte escumalha. Na vida celeste será igual a todos os imorais que o apedrejaram, escumalha bem tratada. A ideia de Deus reside na imoralidade e no pecado. Aquele que julga pela intenção e não pela acção é imoral e facilmente enganável. Assim nós o queremos, um juiz benevolente e facilmente corrompido. Todos os que temem o juízo final temem a Deus e são cumplices desta imoralidade. Aqueles que não participaram na sua criação temem ao homem ou não temem. Quem não teme é louco, e quem teme ao homem, tem medo de si e vive no desespero e perdição. Por temermos o desespero tememos a Deus, e no entanto não sabemos o que este é. Caminhamos para o desconhecido desconhecivel como um louco se lança para um comboio.
Vencemos os nossos medos primitivos? Não, apenas os embelezámos.

"Ashes to ashes, dust to dust..."

2 comentários:

Ana Luísa Pereira disse...

Alguma vez viste Laranja Mecânica? O que escreveste parece uma reflexão baseada em algumas ideias do filme, principalmente aquela que mais choca o visualizador e que tão explicitamente apresentaste, passo a citar, "A condição humana como deve ser por natureza é imoral, pecaminosa, somos seres de desejos, tentações, vontade, sonhos e inconsciência".
Ao ler a tua crónica (vou chamar-lhe crónica, se mo permitires, que eu não gosto de lhes chamar, simplesmente, textos) lembrei-me ainda de uma outra obra, de Fernando Pessoa, que é o poema do Gato; que já deves ter analisado (ou deves estar para analisar) em Português.

A condição humana dá tanto que escrever, e tu escreve-la bem. Gosto.

Pickles disse...

Já vi sim, e é um filme fantástico. Aliás, toda a obra do Kubrick é muito boa. E de facto agora que falas tenho de te dar razão. Penso que estou no "para analisar", mas fui lê-lo à mesma. Compreendo também porque te lembraste do Gato.
E obrigado pelo elogio ^^