quarta-feira, 19 de agosto de 2009

II - O eclipse

Nesse dia, o sol não raiou. Talvez tenha ficado quieto por inércia, talvez se tenha deixado adormecer, talvez esteja com a mão no queixo a mirar o horizonte enquanto sonha com as suas façanhas e as da sua amada... Certo é que a manhã também estranhou, coitada. Não pode trabalhar, e apercebeu-se assim, num lampejo de escuridão, de toda a sua ignorância. Toda a vida amanhecera, e, subitamente, não pôde amanhecer. Pensou ela em tudo o que podia ter aprendido ou feito na vida, agora já não sentiria tanto a falta do sol, mas ele, não estava, não quis aparecer, ou alguma estrela maior o raptou num lampejo de inveja. E como a manhã não amanheceu, também as almas não puderam deambular, e ficaram perdidas na escuridão. Pobres almas penadas... sem sol nem luz que as alumie são consumidas pelo medo. Muito gosta o medo do escuro, e por ironia, tem medo do sol e da luz. No entanto, todos somos muito mais impelidos pelo medo que pela confiança, talvez por termos medo de ter medo, ou talvez pelo medo ter medo que não tenhamos medo e ser monopolista. Talvez daí sermos criaturas auto-destrutivas... Não confiamos nem em nós, cremos nas ilusões que criamos apenas para nossa segurança. Quando nos apercebemos do que realmente somos distribuímos medo e ódio (grandes compinchas esses dois) por tudo quanto é sítio, medo de perder, medo de ser, medo de existir, medo de não existir, e consequentemente, ódio por aqueles que nos fazem perder, ódio por aqueles que nos fazem ser o que não queremos, ódio por aquelas alminhas penadas que existem sem saber que são podres e reles, ódio por sermos como elas e presumirmo-nos como melhores. No entanto, o ódio dá uma força e vontade inimaginável, qual dosagem de adrenalina. Somos muito mais comprometidos em destruir algo do que em cria-lo, preferimos deixar isso a quem de dever. E ao mesmo tempo, o desprezo dá um certo prazer, o poder renegar alguém coloca-nos no topo, no trono da hierarquia social concebida por nós. O ódio acaba por ser uma droga, cega-nos de qualquer lampejo de realidade e faz-nos sentir felizes de uma forma muito pouco saudável, e no entanto, somos lúcidos o suficiente para o repudiar, para continuar a aguardar a luz, o amanhecer, o toque de um raio que nos aqueça, que o orvalho que nos cobre a cara se evapore para que nos possamos mostrar ao mundo, nus, verdadeiros connosco mesmos. Somos criaturas imundas, agarramo-nos às coisas numa dependência que sabemos que não pode ser eterna, somos meros viciados: No ódio, na luz, em nós mesmos... na necessidade de existir para condenarmos a existência. Ah pobres almas, porque vagueais? Aquele cujo destino é certo não teme nem treme, mas o destino nunca é certo, não podemos chamar uma viagem a esta deambulação, naufragamos apenas, nunca atracamos. Onde vamos parar?

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