O Sol raiava na manhã como raiou em todas as manhãs, e a manhã, como um mero elemento proletário e pouco pensante, aceitava-o como óbvio e mantinha a sua rotina em função da ascenção do sujeito. Nessa manhã (e como em muitas outras) deambulavam almas pela Terra, pelos campos, pelas cidades, por becos escondidos e por esconderijos inimagináveis, qual armazém dum narcotraficante colombiano. Essas almas, como todas as almas, eram espelhadas por dentro e tinham uma luzinha brilhante, qual pirilampo com cio. Assim, todas elas apenas olhavam para elas como o seu sol, e viam nelas a luz como anjos iluminados ou demónios em redenção ascendente. Mal elas sabiam o que era a luz, ou as trevas, ou mesmo anjos e demónios. Afinal, se soubessem não eram almas deambulantes pela terra, estariam a 7 palmos dessa outra dimensão a que um dia tiveram direito. O que é o dom da vida senão um impulso eléctrico que mexe aquelas marionetas de carne, vísceras e osso que somos nós os humanos? Mas neste emaranhado de fios, nem sempre o mestre do fantoche se desevencelha, por vezes os fios cruzam-se, cortam-se, e por isso o teatro não consegue ser puro e singelo como é suposto ser o trabalho do Criador. Pois que, nesta ópera que é a mecânica do universo, a orquestra não se rege numa única harmonia, mas numa sinfonia dissonante, imperceptível mesmo para eruditos. E essas coisinhas deambulatórias, tão únicas fantásticas, e ao mesmo tempo tão podres e imorais, lá dançam essa dança dessincronizada, a pisarem-se, espezinharem-se umas às outras, ou em encontros súbitos de tirar o fôlego ao pobre pulmão apaixonado. Mas quando se dança uma música que não se percebe, mesmo a mais mundana das criaturas se pergunta "Porquê? Porque não consigo eu parar? Para quê dançar uma melodia sem fim?" Seremos nós criaturas inúteis na imensidão do universo? Provavelmente, só o tempo o dirá suponho, tempo esse que compassa a dança, tempo esse que também não compreendemos. Mas afinal, qual é a geometria da alma? No universo não existem rectas, portanto resta saber apenas se aquele espelho interior que insiste em que reparemos em nós, em que nos centralizemos, é concavo ou convexo, se nos quer engrandecer, ou se nos faz aperceber da nossa pequenez... Certo é que não é direito, e nunca saberemos quem somos ou o que somos, resta o olhar alheio, o assustador, enorme e aterrador olhar alheio. Amanhã o sol vai raiar, e iluminará as faces pálidas desses seres assustadiços, a luz é reconfortante, reconhecemos os contornos do que nos rodeia, podemos apontar como um aspersor da relva, afectamos toda a gente mecânicamente, sem nos apercebermos da nossa rotação. Não somos nós que giramos afinal, é tudo que gira a nossa volta, a verdade reside na perspectiva. Mas antes do sol raiar de novo, a escuridão virá, apenas veremos a imensidão e o vazio, queremos refugiar-nos pois são ambos assustadores, mas olhando para dentro também vemos uma imensidão abundante de vazio, procuramos a luz, o toque, uma maneira de ver sem os olhos, uma outra alma que nos apazigue. Muito procuram estas presumidas almas imundas, nada encontram senão o seu ego espelhado em sua volta, não são condenáveis por não saberem nada, ou pela sua imoralidade, mas sim por serem reles o suficiente para se acharem todo-superiores e ignorar o estremecer universal que se lhes impõe, mas quem as condena senão elas? Nascem deuses, nascem demónios, nascem como nada, e no entanto serão tudo. E morrerão como nada, reduzidos a pó e cinzas como é de dever. Deixa-las viver, deixa-las deambular...
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